Ronai Rocha: Mapas e calendários no coração da metafísica

O animal digiana e os sistemas de substituição; os dêiticos
[Republicação autorizada de texto originalmente publicado no Substack do autor, dedicado à apresentação de reflexões para o livro O animal digiana.]
1.
Na última newsletter, eu disse que o Peter Strawson incluiu os calendários e os mapas como temas relevantes na metafísica. Ele faz isso em Indivíduos – um ensaio de metafísica descritiva. Há uma boa tradução desse livro, feita pelo Plínio Junqueira Smith. O tema aparece logo no começo do livro, quando Strawson trata de explicar uma coisa muito básica: como é que identificamos particulares, como pessoas ou coisas. Ele começa lembrando os casos nos quais nós precisamos apenas apontar para aquilo que queremos identificar e assim fazemos uma localização direta ou demonstradora da coisa ou da pessoa. Mas há os casos nos quais a coisa que queremos identificar não é algo presente aos nossos sentidos: ela está distante de nós, no tempo ou no espaço, ou em ambos. Para fazer a identificação das coisas que não estão em nossa situação de percepção, diz ele, precisamos nos sofisticar um pouco: precisamos de mapas e calendários. Ele chama isso de “um sistema de relações espaciais e temporais”, uma espécie de pano de fundo sempre disponível, uma “armação”, na tradução do Plínio, para “background”. Nesses sistemas, cada coisa ocupa uma posição e se relaciona de forma única com as demais. Graças a isso a identificação de coisas particulares não fica reduzida a ser simplesmente “relativa a um relato”. Ao ser posicionada em um sistema de relações espaçotemporais, a coisa pode ser referida objetivamente, independentemente deste ou daquele relato, dentro da “armação”.
2.
Strawson diz isso: “Quando nos tornamos sofisticados, sistematizamos a armação com calendários, mapas, sistemas de coordenadas”, e constituímos uma “comunidade de experiências e de fontes de instrução” que funciona como a base de nossas operações com a realidade. Aqui me ocorreu a pergunta: quando foi que nos tornamos sofisticados? Busquei alguma literatura sobre a história da cartografia e a resposta é essa: o uso de mapas se confunde com a evolução humana. Há vestígios deles tão antigos quanto as inscrições e desenhos nos mais antigos ossos e cavernas. Ou seja, os primitivos já eram sofisticados. Descobri também que o velho e bom Sócrates também gostava de mapas. Aristófanes, em As Nuvens, descreve o passeio do malandro Estrepsíades na Academia, o Pensatório. Ao entrar no recinto, Estrepsíades pergunta ao seu guia o que são alguns objetos pendurados nas paredes. Ali estão instrumentos ligados à astronomia, à geometria e mapas. “Olha aqui um mapa do mundo. Vês? Aqui é Atenas”, diz o discípulo. “O quê? Eu não acredito, não estou vendo os juízes sentados no tribunal!”, retruca o visitante, que segue se queixando que não vê ali os amigos dele, e que os territórios distantes parecem estar perto demais. Ou seja, não apenas os mapas eram objetos da Academia, mas já havia na época o humor filosófico sobre as regras de projeção e representação, consagrado em textos como o de Borges, sobre o rigor da ciência.
3.
Outra razão do meu interesse pelos mapas como “artefatos epistêmicos” é que eles exemplificam o que os filósofos chamam de “pensamento analógico”. Essa expressão é ambígua, me apresso a dizer, pois a tradição filosófica estuda as formas de “raciocínio por analogia”, ou do “pensamento analógico” materializado em sentenças, na linguagem natural. É preciso distinguir esse uso de “pensamento analógico” daquele que usamos para ler mapas, diagramas, etc. Os mapas, nesse sentido, parecem preceder a linguagem escrita e os sistemas de numeração. O mapa pode ser apenas mental, pois fazemos mapeamentos cognitivos do espaço ou usamos marcas e inscrições para indicar caminhos. Um dos desafios do digiana é estudar essa diferença, entre o “pensamento analógico” (no sentido de mapas e diagramas, no qual a base da cognição é icônica), e o “pensamento analógico” no sentido filosófico tradicional, no qual a cognição é de tipo sentencial, simbólica.
4.
Não sei dizer se o Strawson foi pioneiro nisso de instalar os “sistemas espaçotemporais”, calendários e mapas, no coração da metafísica. Tugendhat prestou crédito a ele, mas Strawson não cita ninguém nesse tema. E a “sofisticação” pode ser compreendida como a resposta para essa pergunta: como é que conseguimos fazer referências objetivas a coisas que estão fora do alcance de nossos sentidos? Há outros nomes para essa característica da linguagem humana, como “representações desacopladas (ou dissociadas)”, e “deslocamento”. O que importa nesse ponto é a gente se maravilhar um pouco com esse fenômeno que pode passar desapercebido: falamos objetivamente não apenas das coisas que estão ao alcance de nossos sentidos, mas também daquelas distantes de nós, no tempo ou no espaço. Nas aulas de filosofia da linguagem eu perguntava aos estudantes como é que eles explicavam isso, e a resposta, eventualmente, era essa: “Basta usar os verbos nos tempos adequados e indicar os lugares por meio dos seu nomes ”. Ficava a sensação de que falar de mapas e calendários era trazer para a aula de filosofia uns temas menores. Afinal, essas coisas eram, acima de tudo, simples convenções humanas, como poderiam ter alguma dignidade metafísica?
5.
A filosofia, desde a metade do século passado, parece ter incorporado esse tema do Peter Strawson, a armação, o pano de fundo, o background de experiências, sistemas espaçotemporais, a comunidade de experiências e instruções. Indivíduos é da metade dos anos 1950. Um pouco antes, o tema foi tratado por Wittgenstein nas anotações que tomaram o nome de Sobre a Certeza. Wittgenstein trata ali, centralmente, do que chamou de Hintergrund, uma expressão que vem sendo traduzida como “quadro de referências herdado”, “pano de fundo”. Ele faz variações: “mitologia”, “proposições rígidas”, “que não questionamos”, etc. Ele fala também sobre o nosso pertencimento a uma “comunidade” constituída pela ciência e pela educação que partilhamos. Os membros dela não questionam (salvo ocasional desastre) que a Terra é redonda, por exemplo.
6.
Pierre Bourdieu ofereceu uma versão sociológica do “background” retomando e ampliando a noção aristotélica de “hábito”. O “habitus”, como ele diz , é o conjunto difuso dos aprendizados, na maior parte deles implícitos, que fazemos ao longo da vida, e que, por assim dizer, organizam as grandes linhas de nossa vida. O “habitus” é o social que nos atravessa e organiza. O tema surge na obra dele nos anos 1970. Um pouco depois surge uma nova versão filosófica, na obra de John Searle, Intencionalidade (1983). Na versão brasileira a escolha dos tradutores foi a de não traduzir “background”, que é o título do quinto capítulo. Ele voltou ao tema em The Construction of Social Reality. Ele discute o background para melhor explicar o conceito de intencionalidade, e distingue dois tipos: o “background de base”, que inclui o conjunto de capacidades que reconhecemos, sem discutir, em todos os seres humanos, em virtude de nossa infraestrutura biológica, e que constituem a base do que somos, como humanos. E há o “background local”, restrito às práticas culturais, sociais etc, que partilhamos paroquialmente.
7.
Correndo por fora do mainstream filosófico, a “armação”, ou uma versão dela, foi um tema muito caro à Michael Polanyi. Em 1966 ele publicou um livro, The Tacit Dimension, que, a meu juízo, faz parte dessa pequena lista. Por várias razões que não vou discutir aqui, Polanyi é uma espécie de outsider na epistemologia contemporânea e o impacto de seu conceito principal, “a gente sabe muito mais do que consegue dizer”, não atingiu as grandes veias da epistemologia contemporânea, demasiadamente centrada nos tópicos tradicionais (percepção, memória, testemunho etc.). Ele ocupou-se com o que seria um âmbito pré-lógico do conhecimento humano, “as raízes corporais de todo o pensamento”, uma espécie de conhecimento prático, implícito, não verbal. O lema dele pegou, “sabemos mais do que conseguimos dizer”, mas ficou mais ou menos nisso. Polanyi não se alinhava ao positivismo, não flertava com os oxfordianos e não era mais um europeu. Ficou meio esquecido pela epistemologia dominante.
8.
Uma exposição desses “mecanismos de identificação espaçotemporal”, como eu já antecipei, foi feita por Tugendhat na Lição 25 do Lições Introdutórias à Filosofia Analítica da Linguagem. O título é “O mecanismo de identificação espaçotemporal e a constituição da referência a objetos”. O tema é complicado. Eu já comentei que um dos argumentos em favor de certos relativismos e subjetivismos é que tudo que é dito por um ser humano é sempre dito por um “eu”, em um “aqui” e um “agora”. Ora, é verdade que essas expressões são vazias, nenhuma delas se refere a alguém, a algum lugar ou a algum tempo, e parece óbvio que é preciso uma explicação para o fato delas ganharem alguma objetividade. Imagine alguém dentro de um barco, no meio do Oceano Atlântico. Fernando de Magalhães, por exemplo. Ele contempla a imensidão do mar. Como ele faz para dizer onde, precisamente, o quanto ele está longe da Espanha, o quanto ele está perto da América?
9.
A capacidade do Fernando de Magalhães para fazer referência a um lugar que está fora do alcance de sua percepção imediata depende daquilo que pode também ser chamado de “sistemas de objetividade”. Esses sistemas estão baseados na capacidade que temos de ver o mundo como um certo tipo de totalidade que não se confunde com a gente; da mesma forma que o “eu” é possibilitado pela relação com o “tu”, podemos dizer que elaboramos capacidades básicas de representação objetiva mediante a criação de artefatos cognitivos que conectam o nosso eu com um sistema de referência que não se confunde com o nosso espaço subjetivo de percepção. O que o Fernando de Magalhães tem que fazer é conectar-se com esse sistema, por meio de bússolas, sextantes, Sol e as estrelas. Não há um mapa do mar, digamos. Ali é tudo a mesma imensidão de água para todos os lados.
10.
Os primeiros navegadores europeus, na busca de outras terras, tinham um grande problema. Eles conseguiam determinar o lugar onde estavam navegando de duas formas. A primeira não ajudava muito, bastava não se afastar muito do litoral da África, por exemplo. O método relevante, usado para a determinação da latitude, recorria à observação da estrela polar, que era considerado como o polo do firmamento. O ângulo anotado indicava a latitude. Já a longitude era um problema mais complicado. Assim que a proa do navio apontava para o oeste (ou leste), a única medida razoável era seguir em linha reta até o “terra à vista”, pois não havia um método objetivo para determinar o quanto o navio havia se afastado do ponto de partida. O aqui era sempre a mesma imensidão. A determinação da longitude somente foi resolvida, no século XVIII, quando surgiram os primeiros relógios navais e as tabelas matemáticas do movimento da Lua. Fernando de Magalhães, e todos os demais, tinham que engatar o “eu, aqui e agora” a dispositivos e coisas estáveis: estrelas, Sol, Lua, relógios. E usar, para esse engate, outros dispositivos: bússolas, sextantes, mapas.
11.
O resumo é assim: o “eu”, um pronome vazio, funciona em dois modos básicos: neutro e drive, desengatado e engatado, embreado ou desembreado. Essa metáfora da embreagem, acho eu, funcionava bem nas aulas de filosofia da linguagem. Até porque ela não é minha. Quem usa essa expressão, “embrear” ou “desembrear”, no sentido que estou usando, são os linguistas. Forçando muito a barra, seria possível dizer que estamos na posição do “neutro” quando falamos sobre coisas que estão na situação de percepção. O engate do “eu” acontece quando ele é plugado em um desses “sistemas de objetividade”. Ou seja, quando ele é posicionado dentro de um sistema de coordenadas que não se confunde com ele, no qual ele é apenas um ponto dentro de um sistema de referências. Ou seja, o “eu” se engata, como diz o Tugendhat, em um “sistema de substituição”.
12.
Tudo isso está muito rude e simplificado demais. Nas aulas eu dava o exemplo do sujeito que chega no armazém e vê uma placa que diz: “Fiado só amanhã”. Ele, tolo que é, vai embora e volta no dia seguinte, pedindo fiado. O dono do bolicho aponta para a placa. Eu, aqui, agora, ontem, amanhã são signos vazios, neutros. Eles só se “enchem” quando são substituídos por algum sistema de coordenadas: mapas e calendários, por exemplo, que por sua vez se ancoram em coisas duráveis: rios e montanhas, eventos memoráveis. Greenwich poderia estar em muitos outros lugares, a Terra é redonda. Já a Estrela Polar... É nessa toada que vai surgindo uma não relatividade em relação a situação de fala. A gente concorda em convencionar alguns pontos-zero e trabalha a partir dali.
13.
Na vida cotidiana, os sistemas de substituição mais evidentes são aqueles vinculados ao tempo – o calendário gregoriano, a hora oficial – e ao espaço – as coordenadas geográficas e os mapas. Eles são sistemas de identificação que somente funcionam quando seus criadores e usuários podem fazer referência a si mesmos localizando-se ou localizando algo no interior do sistema em questão. Calendários e mapas são tecnologias de debreagem do eu; são, por assim dizer, tecnologias espirituais que fazem o engate entre o sistema egocêntrico e o sistema de objetividades. No vocabulário do digiana, acho que poderia dizer, recuperando uma expressão que surgiu nos anos 1950, que são máquinas analógicas cuja finalidade é digitalizar a nossa experiência do espaço e do tempo. Mas isso fica para a próxima newsletter. Esta aqui já está demasiadamente longa, complicada e pouco clara.
Ronai Rocha é professor de filosofia (aposentado) da Universidade Federal de Santa Maria. Suas reflexões podem ser encontradas no Animal Digiana (plataforma Substack) e em diversos livros:
Ensino de filosofia e currículo. Ed. UFSM, 2015.
Quando ninguém educa: questionando Paulo Freire. Ed. Contexto, 2017.
Escola partida: ética e política na sala de aula. Ed. Contexto, 2020.
Filosofia da educação. Ed. Contexto, 2022.
O animal digiana: um recall de filosofia. 2024.
Caminhos e extravios da escola brasileira. Ed. Contexto, 2025.