Rogério Severo, Sobre a possibilidade de uma linguagem atemporal
Versão revisada de um artigo publicado em 1994, na revista Questões Disputadas, dos estudantes de filosofia da UFRGS.
Sobre a possibilidade de uma linguagem atemporal
Rogério P. Severo (UFRGS)
I. Este artigo apresenta os argumentos de Richard Gale (1962) e Arthur Danto (1968) contra a possibilidade de se traduzir, sem perdas, qualquer frase de nossa linguagem comum para uma linguagem em que não se usem tempos verbais nem dêiticos temporais.[1]
Algumas tentativas foram feitas, na filosofia analítica contemporânea, para se substituir as noções de passado, presente e futuro às noções de anterior, simultâneo e posterior.[2] Em consequência, teríamos a possibilidade de eliminar tempos verbais e dêiticos por meio de traduções de qualquer frase para uma frase atemporal, isto é, uma frase cujo valor de verdade não dependa do momento em que é proferida. A verdade de uma frase depende de as coisas estarem, no mundo, como ela diz que estão. Porém, há algumas frases cujo sentido também depende, justamente por causa da ocorrência de dêiticos e tempos verbais, do momento de sua enunciação. O sentido de uma frase atemporal, por outro lado, não depende nem faz referência, direta ou indireta, ao momento de sua enunciação. A elaboração de linguagens atemporais pode servir a diversos propósitos. Quine (1960, § 36), propôs uma “notação canônica” desprovida de tempos verbais ou dêiticos de qualquer tipo. Essa linguagem atemporal seria mais simples e adequada para propósitos científicos. Fernando Fleck (1997) empregou a possibilidade de se verter todas as frases temporais de uma linguagem para frases atemporais como um meio de princípio de bivalência com futuros contingentes.
II. Em argumentos desse tipo, o procedimento seria do seguinte tipo: uma frase temporal qualquer, como, por exemplo, “Uma bomba explodirá nesta sala daqui a cinco minutos”, deveria poder ser traduzida para uma frase atemporal. Ora, há dois meios básicos de se fazer essa tradução. O primeiro consiste em substituir os tempos verbais de uma frase “por uma afirmação que descreva uma relação-B atemporal [de anterioridade, simultaneidade ou posterioridade] entre o evento referido pela afirmação em que ocorrem os tempos verbais e o momento no qual a afirmação é feita” (Gale, 1962, p. 56). Assim, a frase anterior seria traduzida por esta: “Uma bomba explode (presente atemporal) nesta sala cinco minutos após a enunciação desta frase”. No entanto, essa última frase não satisfaz o critério de atemporalidade acima referido, uma vez que seu sentido (e, portanto, sua verdade ou falsidade) depende do momento de sua enunciação. A expressão “cinco minutos após a enunciação desta frase funciona como um dêitico. Dizer “cinco minutos após a enunciação desta frase” às 9h indica um momento distinto daquele indicado pela mesma expressão dita às 10h, por exemplo. Pode-se substituir essa expressão por alguma outra cujo sentido não dependa do momento de sua enunciação. Então teríamos algo como “Uma bomba explode (presente atemporal) nesta sala cinco minutos após o acontecimento a”. Nesse caso, porém, ficamos sem saber se a explosão da bomba é um evento passado, presente ou futuro. Essa informação perdeu-se na tradução. Portanto, essa tentativa de tradução para uma linguagem atemporal resulta fracassada, ou por usar de modo implícito uma expressão dêitica de tempo, ou por perder parte do significado da frase original.
O segundo meio de se traduzir para uma linguagem atemporal é por meio de um sistema de datação. Assim, a frase original poderia ser traduzida para “Uma bomba explode (presente atemporal) esta sala às 9h05min do dia b”. De fato, temos agora uma frase cujo sentido independe do momento de sua enunciação. Contudo, a frase traduzida não diz se a bomba já explodiu, está explodindo ou explodirá. Para saber isso, é preciso consultar um relógio-calendário e averiguar que dia é hoje e que horas são. Essa informação perdeu-se na tradução e a única maneira de incorporá-la à frase seria por meio do uso, novamente, de dêiticos temporais: “Uma bomba explode (presente atemporal) esta sala às 9h05min do dia b e agora são 9h do dia b”. Assim, a frase deixa de ser atemporal.
III. Há algumas frases que podem ser e geralmente são expressas em linguagem atemporal. “2+2=4”, por exemplo. Frases desse tipo não fazem referência nem pressupõem eventos ou acontecimentos. Não é esse o caso com as frases usadas para orientar ou descrever ações. Se ouço, de fonte confiável, a frase “Uma bomba explodirá esta sala daqui a cinco minutos”, minhas atitudes nos próximos cinco minutos serão bem distintas daquelas que tomaria se ouvisse “Uma bomba explodiu esta sala há dois anos”. A razão disso está no fato de o passado ser, em certo sentido, inalterável.[3] O futuro, diferente do passado, é em parte alterável por ações. Ações humanas e bombas explodindo são eventos inscritos no tempo, ao contrário de verdades matemáticas. Além disso, uma análise do conceito de ação revela que ele contém, como um de seus elementos, a intencionalidade do agente. Ora, ter a intenção de realizar uma ação particular, digamos, c, implica em se ter a intenção de tornar verdadeira a frase que descreve essa ação c. A descrição de ações e intenções, nesse sentido, não tem como ser adequadamente feita por uma linguagem atemporal.
IV. Embora uma tradução sem perdas de todas as frases de nossa linguagem comum para uma linguagem atemporal seja impossível, o inverso, isto é, a tradução das noções de simultâneo, anterior e posterior às noções de presente, passado e futuro, pode ser feita, como demonstra Gale (p. 59). Quando usamos expressões do tipo “X é anterior a Y” há uma tradução que resulta ser logicamente equivalente: “Ou X é um evento presente e Y, futuro; ou X será presente e Y, futuro; ou X foi presente e Y, futuro”. Da mesma maneira, “X é simultâneo a Y” é equivalente a “X e Y são eventos no presente, foram eventos no presente ou serão eventos no presente”. Analogamente, “X é posterior a Y” equivale a “Ou X é um evento presente e Y, passado; ou X será um evento presente e Y, passado; ou X foi um evento presente e Y, passado”.[4]
Danto, Arthur. Analytical philosophy of history. New York: Cambridge University Press, 1968. Internet Archive, Amzn
Fleck, Fernando P. O problema dos futuros contingentes. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997.
Gale, Richard. “Tensed statements”, Philosophical Quarterly, vol. 12, n. 46, 1962.
Quine, W.V. Word and object. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1960. Internet Archive, Amzn
Também adotam essa posição C.D. Broad, J. Wisdom, D. Pears, P.F. Strawson, A. Prior e W. Sellars. ↩︎
É o caso de A. Ayer, N. Goodman, B. Russell, W. Quine e, entre nós, do Prof. Fernando Fleck. ↩︎
Em outro sentido, porém, pode-se dizer que os eventos passados mudam pela aquisição de novos atributos. A frase “1618 é o ano em que começou a Guerra dos Trinta Anos” afirma algo do ano 1618 que só foi adquirido após 1648, quando a guerra acabou. ↩︎
Agradeço a Balthazar Barbosa Filho, Fernando Fleck, Paulo Faria e Renato Fonseca pelas leituras das primeiras versões deste artigo, seguidas de comentários e ensinamentos. ↩︎
Arquipélago Filosófico, Vol. 1, No. 14 (2025), e-014
ISSN 3086-1136