Amartya Sen e o alcance da razão

Por Florencia Salaberry
AMARTYA SEN, o economista-filósofo indiano, já foi descrito como um polímata. Seus interesses e domínios intelectuais são tão espantosamente diversificados que é difícil estabelecer entre eles uma conexão sistemática, ou enxergar neles um fio condutor geral, uma filosofia. Nas disciplinas para as quais fez contribuições — quase sempre rompendo fronteiras —, enfocou temas tão variados como as teorias da escolha social e da economia do bem-estar, o problema da fome, a natureza do “desenvolvimento econômico”, o conceito e a medição da desigualdade, e a ideia de justiça (por oposição às “teorias” da justiça). Sen também contribuiu para uma “uma leitura mais abrangente e menos parcial” de Adam Smith, desfazendo a imagem de uma “vida espetacularmente esquizofrênica”, cindida entre o economista e o filósofo moral, e para viabilizar soluções sustentáveis para os problemas crônicos da Índia contemporânea.
Como escreveu recentemente Jean Drèze, seu amigo e colaborador de longa data, embora Sen seja mais conhecido como economista, a rigor é economista e filósofo — assim como foi Adam Smith. A esse respeito, Drèze acrescenta um insight revelador: muitas vezes, é a sua própria base filosófica que permite a Sen questionar as ideias recebidas da economia e transformá-las, traço essencial e marcante de sua habilidade em situar questões antigas em um novo plano. Além disso, Drèze salienta que embora Sen esteja sempre preocupado com soluções práticas e seja, nesse sentido, um homem de ação, sua ferramenta de ação preferida é a argumentação pública: Amartya Sen é um argumentador. Inserindo Sen na longa tradição indiana de debates e discussões, Dréze o considera o “argumentador indiano por excelência”.
Essa multiplicidade de aspectos torna difícil uma leitura geral e unificada da obra de Sen. No entanto, há alguns temas e propósitos centrais, e nesta breve introdução gostaria de sugerir um deles, uma perspectiva de leitura em torno de um ponto de fuga pouco comum: o alcance da razão. A ideia de que a razão pode operar — sendo bom que opere — em domínios supostamente fora do seu alcance é crucial para a filosofia de Amartya Sen. Essa ideia compreende a racionalidade como uma busca por boas razões em meio à admissão de sua própria falibilidade. Além disso, essa ideia compreende o cultivo de uma mentalidade aberta, isto é, a abertura à diversidade de razões, bem como o compromisso com a clareza, o raciocínio público e a liberdade de pensamento, o reconhecimento da importância da discussão e deliberação públicas para o esclarecimento individual e o progresso social, o humanismo e cosmopolitismo, e o compromisso com a eliminação das múltiplas formas de privações de liberdade e das múltiplas formas de injustiça. Podemos pensar na ideia do alcance da razão como um fio condutor da obra de Sen, capaz de conectar os múltiplos temas e problemas de sua obra. Trata-se de um princípio organizador do seu pensamento, um alicerce das suas estratégias argumentativas.
A expressão “o alcance da razão” [the reach of reason] aparece pouco em seus textos e Sen tampouco se dedica à sua análise. Mas esse conceito ajuda a explicar o que a economista Tara Natarajan chamou de “novos hábitos mentais”, que foram introduzidos por Sen e ampliaram muito as orientações metodológicas e substantivas da pesquisa em Economia e Filosofia. Para Natarajan, Sen influenciou de forma singular a disciplina da Economia “oferecendo-lhe uma visão e um propósito renovados ao reconectá-la com seus interesses fundamentais pela humanidade e sociedade”. A abrangência do alcance da razão está na base do reconhecimento da possibilidade e da necessidade do desenvolvimento da Economia como ciência moral, levando, como alguns sublinham — Putnam e Vivian Walsh, destacadamente —, a um retorno da Economia aos seus moldes clássicos de conhecimento.
A ideia do alcance da razão embute, como elemento nuclear, a ampla abrangência do entrelaçamento entre racionalidade e liberdade no pensamento de Sen. Tal elemento nuclear especifica a racionalidade como livre exercício do raciocínio reflexivo e do escrutínio crítico de razões. Isso tem notáveis implicações para as soluções originais apresentadas por Sen para muitos problemas tradicionais da economia e da filosofia. Muitas vezes, a aplicação do exame crítico de razões transforma a própria natureza dos problemas, dissipando becos sem saída.
Essa ideia de racionalidade contrasta com concepções chamadas por Sen de “formulaicas” (por exemplo, a pura consistência de escolhas ou a exclusiva ancoragem na motivação autointeressada), dominantes na economia, e que avançam imperialmente sobre os territórios das ciências sociais e do direito. Um erro fundamental dessas concepções formulaicas, segundo Sen, consiste em dissociar o uso da razão da liberdade de raciocinar e argumentar. Embora pareça trivial, inofensiva ou minimalista, por se aproximar do senso comum ou de um vago bom senso, essa ideia mais ampla de racionalidade significa uma mudança radical de perspectiva.
Essa mudança de perspectiva manifesta-se em um recurso heurístico empregado por Sen. Ao longo de sua obra, sustentou que os problemas econômicos só podem ser resolvidos no plano mais amplo da ética (como costumava ser o caso antes do império dos neoclássicos). Sen argumenta que não há como se resolver problemas que têm dimensões éticas em um plano em que o único “valor” a ser considerado é o da maximização da eficiência (a seu ver, um nome pomposo que esconde o objeto da maximização: a mera dimensão da satisfação individual, que exclui objetivos éticos mais abrangentes, tais como poder escolher livremente mesmo estados de coisas futuros, até mesmo incertos). Podemos ilustrar esse ponto com um exemplo: se escolho livre, consciente e ponderadamente — o que Sen chama de “escolha arrazoada” — diminuir minhas “pegadas de carbono” — alterando, por exemplo, meus padrões de consumo ou mudando a minha dieta — não o faço em razão de um cálculo autointeressado que compara o que posso vir a ganhar ao que posso vir a perder. Na verdade, segundo Sen, é perfeitamente possível que eu não faça cálculo algum, como se comparasse pesos em uma balança (trade-offs, conceito muito apreciado atualmente pelos “economistas comportamentais” e muitos teóricos de outras disciplinas). Posso simplesmente abandonar a comparação de razões, não apenas por considerá-las incomparáveis ou imponderáveis, e em vez disso decidir fazer o que é certo ou o que beneficia até mesmo pessoas que ainda não nasceram, além de garantir — ainda que envolvendo complexas probabilidades — a continuidade da vida de animais e a sobrevivência de ecossistemas. Posso, em outras palavras, ser motivado eticamente. Para usar uma concepção genial de Richard Hare, posso escolher os próprios valores, ou, na linguagem de Hare, “decidir por princípios”, escolher as minhas próprias razões fundamentais.
A eliminação dessas considerações éticas na explicação do comportamento econômico implica, diz Sen, um achatamento: soluções unidimensionais, sustentadas por escolhas estereotipadas e formulaicas. Podemos encontrar uma outra ilustração dessa atitude no uso tradicional do conceito de “desenvolvimento”, que inclui apenas a dimensão da eficiência econômica e da satisfação medida de forma padronizada. O pressuposto, nesse caso, é que todas as experiências e atitudes valorativas das pessoas se resumem — somando-se à dimensão da satisfação, a única supostamente possível — a algo como “eu valorizo, logo consumo”, como se o universo diversificado dos valores pudesse ser reduzido a “ter autossatisfação”.
Ao considerar a dimensão ética dos problemas econômicos, Sen dá um salto heurístico: para realmente definir corretamente o problema do desenvolvimento, precisamos adotar uma outra perspectiva, bem mais abrangente. Devemos considerar as vidas que as pessoas têm condições de realmente escolher, focando, desta forma, as liberdades de que ela desfrutam para ser, fazer e realizar o que valorizam de modo refletido e arrazoado (ou, de forma contrafática, que valorizariam se escolhessem refletida e arrazoadamente). Essas liberdades, que Sen chama de capabilities, possuem uma estrutura conceitual complexa que merece ser analisada (uma das elucidações mais esclarecedoras é sugerida por Martha Nussbaum). Sugiro aqui que é possível entendê-las como um exemplo nítido e esclarecedor que operacionaliza muitas das implicações do imbricamento de racionalidade e liberdade. Como não poderia deixar de ser, por esse imbricamento ser um princípio filosófico do pensamento de Sen. (precisava subrinhar isso, e deixar um gancho para as charlas vindouras). Acredito que tal salto heurístico possa ser visto como um elemento central da estratégia argumentativa de Amartya Sen.
A ideia fundamental do alcance da razão — funcionando como um princípio do “modo de pensar” de Amartya Sen, um elemento da sua estratégia argumentativa ou um fio condutor para traçar um percurso através da sua obra — também pode ser sugerida aqui como uma perspectiva de leitura e compreensão, uma e não a única. Uma vantagem é que ela ajuda a perceber, de forma instigante, aspectos da singularidade do seu pensamento. Dentre eles, um traço essencial de seu modo radical de pensar: admitindo o grande alcance da busca por razões, sempre perguntar por boas razões que possam se contrapor às supostas razões definitivas, apresentadas muitas vezes de forma dogmática e com referência a alguma autoridade ou tradição, como se fossem à prova de questionamentos. Visto sob outro ângulo, em todos os contextos da sua vida, as amplas e diversificadas interações dialógicas entre Sen e seus inúmeros e diversos interlocutores são prova do alcance da razão. Como seu filho, Kabir Sen, recordou de forma admirável: “Fosse debatendo questões de justiça social, da política britânica, da Ética a Nicômaco ou mesmo na nossa ‘prática extra de matemática’ (como ele gostava de chamar) – até à mesa de jantar – meu pai se aprazia bastante pedindo-nos para considerarmos diferentes perspectivas e mantermos a mente aberta” (Relato publicado em GQ Índia, em 17 de junho de 2016).

Referências
Sen, Amartya. The argumentative Indian. New York: Penguin, 2006.
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____. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
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____. Identidade e violência: a ilusão do destino. São Paulo: Iluminuras, 2015.
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____. Rationality and freedom. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2002.
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____. A ideia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
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Hamilton, Lawrence; Drèze, Jean. How to read Amartya Sen. Penguin, 2020.
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Hare, Richard. The language of morals. Oxford: Clarendon, 1952.
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Natarajan, Tara. “Shifting economics: fundamental questions and Amartya K. Sen’s pragmatic humanism”, The Journal of Philosophical Economics, vol. 8, 2014.
Florencia Salaberry trabalha como escritora e editora em Aceguá, no Rio Grande do Sul. Entre uma carreira e outra, dedica-se à Filosofia e atualmente escreve um livro sobre Amartya Sen.